domingo, 11 de março de 2007

32 dentes

A mesma inquietação sufocante no ar pesado da noite permanecia suspensa sobre minha cabeça, agora estendida em uma cama, outrora esborrachada sobre a calçada. O sangue coagulado entranhou nos dentes. As narinas doíam e sangravam com o atrito do ar. O oxigênio deslizava ressecado pela garganta dolorida e feria meus pulmões.

Estava sonhando que recitava Ilíada diante de um espelho e meus dentes caíam todas as vezes em que esquecia um trecho. O mais estranho é que nunca li a Ilíada. Fiquei banguela.

"Canta-me a cólera — ó deusa — funesta de Aquiles Pelida..."

Foram minhas primeiras palavras ao despertar nauseado. Fiquei lá deitado repetindo: Canta-me a cólera Canta-me a cólera Canta-me a cólera.

Senti meus molares cariados, pontiagudos, cravados no osso. Enquanto deslizava a língua por toda a dimensão da boca, esbarrando em aftas e dois recentes vãos, abertos a socos e pontapés, lembrava-me que já era um homem. Sim, um homem que possuía uma arcada dentária completa e saudável, como a de poucos homens, que pouco lhes restam na boca, a não ser lamentações e gemidos.
Uma arcada que me permitia sorrir. Melhor exibi-la antes que mais alguns golpes, me deixem sem a única coisa da qual ainda posso me orgulhar. Já sou um homem e ainda possuo dentes, para com a boca escancarada, gengivas inchadas, debochar da miséria que expia.

No espelho, admirado. Trinta e dois dentes fincados até a raiz.